sábado, 31 de maio de 2025

O Misantropo (Dyskolos), de Menandro: A Comédia Nova e a Ideologia da Reclusão

1. Resumo do Enredo

A peça gira em torno de Cnemón, um velho camponês solitário e avesso à convivência humana. Sua filha desperta o interesse amoroso de Sostrato, um jovem da elite urbana. Para conquistá-la, Sostrato precisa superar o temperamento hostil de Cnemón e conquistar a aceitação da família. A peça termina com um casamento que simboliza a reconciliação social.

2. Deslocamento da Esfera Pública para a Privada

Diferente das comédias de Aristófanes — que ridicularizavam políticos, instituições e eventos públicos —, O Misantropo se passa integralmente no espaço doméstico e rural. A pólis, os tribunais, a Assembleia e o debate público desapareceram da cena dramática.

➡️ Esse deslocamento espacial e temático revela uma mudança histórica profunda: o colapso da democracia participativa e a ascensão dos impérios helenísticos, nos quais o sujeito já não intervém no destino coletivo, mas se refugia no casamento, na família e na moral privada.

Do ponto de vista marxista, isso corresponde ao esvaziamento da vida política e à reconfiguração do indivíduo como ente privado — efeito ideológico da centralização estatal e da desmobilização cívica.

3. Cnemón como Figura do Colapso do Ideal Cívico

Cnemón representa a alienação social extrema: odeia os vizinhos, evita todo contato humano e recusa qualquer forma de convivência coletiva. Em termos marxistas, ele é a encarnação do homem economicamente funcional (trabalha a terra), mas socialmente isolado.

➡️ Não se trata de um herói trágico, mas de um sujeito derrotado pela história: um resquício da ordem camponesa diante de um mundo já dominado pelas relações urbanas, monetárias e jurídicas. Sua misantropia não é apenas temperamental, mas expressão de uma forma de existência alienada.

4. Moral Conciliadora: Naturalização da Hierarquia

A peça termina com um “final feliz”: Sostrato, jovem rico e urbano, casa-se com a filha de Cnemón, e todos os conflitos se resolvem por meio da benevolência e da moral. Essa solução dramática revela o papel ideológico da Comédia Nova:

  • Não há denúncia das desigualdades, mas sim sua harmonização simbólica;

  • A diferença de classe entre camponês e aristocrata é resolvida no amor;

  • A autoridade patriarcal é restaurada e reafirmada;

  • O indivíduo é “domesticado” pela moral tradicional.

➡️ Trata-se de uma forma de reconciliação ideológica que evita o confronto de classes e naturaliza a hierarquia como algo desejável e necessário.

5. Ausência de Crítica Estrutural

Diferente da comédia antiga, Menandro evita os temas políticos e a crítica coletiva. Os problemas apresentados são de ordem psicológica ou moral: Cnemón é misantropo por natureza, e não por ter sido marginalizado por estruturas sociais injustas.

➡️ Isso é típico de ideologias em sociedades de dominação consolidada: os conflitos são deslocados para o plano do indivíduo, enquanto as condições sociais são apresentadas como naturais, imutáveis, inevitáveis. A comédia provoca o riso — mas o riso despolitizado, que reafirma a ordem vigente.

6. Conclusão: A Nova Alienação da Comédia

O Misantropo é um documento ideológico de transição: entre o cidadão ativo da pólis clássica e o súdito passivo dos impérios helenísticos. Sua estética privatizada, sua moral psicologizante e seu tom conciliador revelam:

  • O esvaziamento político da arte;

  • A fragmentação da esfera pública;

  • A consolidação de uma nova forma de alienação: o indivíduo resignado à ordem doméstica, afastado da coletividade, naturalizando sua submissão social.

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