domingo, 1 de junho de 2025

Quarto de Despejo e a escrita da fome: uma análise marxista da obra de Carolina Maria de Jesus

Introdução

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome.”
— Carolina Maria de Jesus


📖 Sobre a obra

Publicado em 1960, Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada reúne os registros cotidianos de Carolina Maria de Jesus, catadora de papel, mãe solo e moradora da favela do Canindé, em São Paulo. Escrevendo em cadernos usados e folhas achadas no lixo, Carolina denuncia com crueza e lucidez a fome, a violência, o racismo e a dignidade ferida — mas mantida — da classe trabalhadora marginalizada no Brasil urbano do século XX.


🔍 Análise marxista por eixos


🧱 1. Condições materiais da vida: exploração e miséria urbana

A vida de Carolina é marcada pela luta diária pela sobrevivência. O trabalho que a sustenta — catar papel e ferro — é informal, instável e invisível aos olhos do Estado e da burguesia. Trata-se da massa marginalizada que compõe o chamado “exército industrial de reserva” (Marx), sempre disponível, mas excluída da estabilidade.

“Hoje não ganhei dinheiro. Só comi um pedaço de pão que encontrei no lixo.”

🔎 Comentário marxista:
A favela é o “quarto de despejo” do capitalismo urbano: um espaço onde se descartam os que não servem aos interesses diretos do capital. A citação retrata a brutalidade de uma economia que naturaliza a fome e oculta a miséria atrás do progresso industrial.


💣 2. Alienação e consciência de classe

Ao contrário de um sujeito alienado, Carolina observa o mundo com clareza crítica. Sua escrita contém elementos de consciência histórica e percepção das estruturas de poder que organizam sua exclusão.

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome.”

🔎 Comentário marxista:
Carolina reconhece que o Estado não é neutro: ele serve a uma classe que não sente, nem conhece a realidade do povo. Essa afirmação sinaliza uma ruptura com a alienação política e afirma a necessidade de representação de classe, não de elites distantes.


✍️ 3. A escrita como forma de resistência

Carolina escreve — e isso, em si, é revolucionário. Mulher, negra, pobre, favelada: seu lugar social foi historicamente negado à palavra escrita. Ao narrar sua vida, ela rompe esse silêncio imposto.

“Eu escrevo o que vejo. A favela é feia. Eu não posso embelezar.”

🔎 Comentário marxista:
Sua opção por não “embelezar” a realidade é uma escolha política. Carolina recusa a ideologia da harmonia social imposta pela elite e mostra o que ela quer esconder. Sua escrita é um ato de desalienação cultural, pois tira da invisibilidade a experiência concreta da favela.


⚖️ 4. O patriarcado e a luta das mulheres negras

Carolina também registra a violência de gênero e racial que marca sua existência. Mãe abandonada, insultada por homens, julgada por ser mulher e negra, ela resiste com altivez.

“Fui buscar o dinheiro que o pai da Vera me deve, e ele me chamou de negra vagabunda.”

🔎 Comentário marxista:
O capitalismo periférico é estruturalmente racista e patriarcal. Carolina vive essa intersecção brutal: seu corpo e sua voz são constantemente negados, mas ela não se cala. Sua figura desmonta o mito da mulher submissa e mostra que resistência também é sobrevivência com dignidade.


🧩 Conclusão crítica

Quarto de Despejo é uma obra que revela as entranhas do Brasil desigual. Não é apenas um relato pessoal: é um documento histórico, um grito político e um gesto literário potente. Carolina Maria de Jesus transforma sua exclusão em denúncia, sua dor em linguagem, sua fome em crítica.

📌 A partir de uma leitura marxista, a obra:

  • Expõe a realidade brutal do capitalismo urbano e dependente no Brasil;

  • Rompe com a alienação por meio da escrita e da denúncia direta;

  • Aponta para uma subjetividade negra, feminina e insurgente que desafia a ordem social dominante.


“Se eu tivesse estudado, seria uma grande escritora. Mas eu sou escritora mesmo assim.”
— Carolina Maria de Jesus

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