1. Contexto Histórico: Da Comunidade Gentílica à Pólis Aristocrática
As epopeias homéricas — Ilíada e Odisseia — atribuídas tradicionalmente a Homero, foram compostas entre os séculos VIII e VII a.C., mas suas raízes remontam a tradições orais de períodos anteriores. Esse momento histórico marca o fim da chamada “idade das trevas” grega, caracterizada pelo colapso das estruturas micênicas e a lenta emergência de uma nova ordem social: a aristocracia guerreira.
Do ponto de vista do materialismo histórico, essa passagem representa a transição das formas comunais tribais (genos) para uma sociedade segmentada em linhagens dominantes — os basileus, chefes aristocráticos que consolidam seu poder sobre a população.
2. Valores Dominantes: Honra, Glória e Sangue
A ideologia expressa nas epopeias de Homero gira em torno de três valores centrais, próprios da elite guerreira:
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Areté (virtude): excelência nas armas e na liderança;
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Timé (honra): prestígio social reconhecido pelos pares;
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Kléos (glória): fama imortal conquistada na guerra, transmitida pela poesia épica.
Esses valores não possuem caráter universal, mas são próprios da classe dominante, uma aristocracia hereditária que legitima seu status tanto pelo nascimento quanto pelo heroísmo individual.
É importante notar que o povo comum — trabalhadores, camponeses, servos, escravizados — quase não têm voz nas narrativas. Eles aparecem apenas como figuras subalternas: escudeiros, massa anônima ou objetos da dominação.
3. A Função Ideológica da Epopéia
Sob a perspectiva marxista, a poesia homérica funciona como um aparato ideológico (no sentido de Althusser), cumprindo funções específicas para a legitimação da ordem social:
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Naturaliza a dominação aristocrática, apresentando-a como uma herança divina, com reis descendentes dos deuses;
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Glorifica a guerra e o saque como fontes legítimas de riqueza e prestígio, exemplificado por Aquiles e seus espólios;
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Apaga os conflitos sociais reais, focando o drama nos conflitos internos da nobreza (como entre Aquiles e Agamenon), enquanto invisibiliza a luta entre classes.
4. A Religião como Instrumento Simbólico
Os deuses homéricos são entidades antropomórficas e partidárias, que intervêm diretamente nas batalhas, protegendo linhagens específicas e distribuindo destinos conforme interesses aristocráticos. Eles não são forças éticas ou universais, mas refletem e justificam a ordem social vigente.
Essa visão confirma o que Marx afirma na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: a religião funciona como um reflexo invertido da realidade social, e aqui, os deuses épicos simbolizam uma sociedade marcada pela desigualdade e pela competição violenta.
5. A Passagem à Pólis e a Superação da Epopéia
Com o surgimento da pólis clássica, a hegemonia ideológica da epopeia homérica começa a ser superada:
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A tragédia emerge como a forma ideológica dominante, representando conflitos mais profundos;
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O herói aristocrático cede espaço ao cidadão como sujeito político;
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O foco da guerra aristocrática é substituído pelo conflito social entre classes (povo contra aristocracia), exemplificado nas tragédias de Sófocles, como Antígona e Édipo Rei.
Conclusão Marxiana
As obras atribuídas a Homero são documentos ideológicos que expressam e legitimam uma sociedade aristocrática em processo de consolidação. Elas:
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Dramatizam a centralidade da linhagem e do heroísmo individual;
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Naturalizam a dominação senhorial e guerreira;
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Não são “neutras” ou “universais”, mas representações específicas da ideologia da classe dominante do mundo grego pré-clássico.
Assim, a Ilíada e a Odisseia devem ser compreendidas como instrumentos de manutenção da ordem social da aristocracia guerreira, funcionando para perpetuar suas crenças, valores e poder em um contexto histórico determinado.
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