A Canção de Rolando (La Chanson de Roland), escrita por volta do século XI na França feudal, é considerada um dos grandes marcos da literatura medieval europeia. Inspirada em um episódio real — a emboscada sofrida pela retaguarda do exército de Carlos Magno nos Pireneus em 778 — a obra transforma essa derrota militar em uma epopeia heroica, repleta de fé, glória e sacrifício.
Mas o que acontece quando olhamos para essa obra não apenas como literatura, mas como expressão ideológica de uma sociedade baseada em hierarquia, fé e violência? Neste artigo, propomos uma leitura marxista da Canção de Rolando, analisando como a narrativa legitima a ordem feudal e esconde seus conflitos internos.
📜 Contexto histórico
A França do século XI vivia sob a lógica da senhorialização, em que a terra e o poder estavam nas mãos da nobreza guerreira e do clero. A fidelidade entre suseranos e vassalos era o alicerce da vida política, e a Igreja Católica exercia um papel central na legitimação das estruturas de dominação.
Nesse cenário, a literatura épica surge como uma forma de transmitir valores, moldar subjetividades e justificar a ordem existente. A Canção de Rolando é um exemplo claro disso.
✍️ Características da obra
-
Gênero: poesia épica (inicialmente oral, depois transcrita)
-
Estilo: versos curtos (laisses), uso de fórmulas repetitivas típicas da tradição oral
-
Temas centrais: honra, lealdade, fé cristã, guerra contra o “inimigo infiel”, martírio
🔍 Uma leitura marxista: ideologia em verso
Abaixo, destacamos alguns trechos e temas da obra, acompanhados de uma análise crítica baseada na teoria marxista da ideologia, especialmente a partir de Louis Althusser, que vê a literatura como parte dos aparelhos ideológicos de Estado — isto é, como ferramentas para a reprodução simbólica da dominação.
⚔️ 1. Rolando recusa tocar o olifante (trompa)
“Deus me confunda, se por minha culpa a França for desonrada!”
Análise:
Rolando prefere a morte a pedir ajuda, reforçando o código de honra da nobreza guerreira. A glória vale mais que a vida. A obra idealiza a submissão total ao rei e à cruz, naturalizando o sacrifício como virtude.
👑 2. Carlos Magno como o rei justo e sagrado
“Nunca houve igual em defender os cristãos e punir os infiéis.”
Análise:
O imperador aparece como defensor da fé e da ordem divina. A monarquia cristã é santificada. A luta contra os muçulmanos é apresentada como cruzada moral, ocultando seu interesse territorial e político.
🤝 3. A lealdade vassálica como virtude suprema
“Rolando serve bem a Carlos, seu senhor.”
Análise:
A fidelidade ao senhor é apresentada como a maior qualidade de um homem. Essa moral feudal reprime a autonomia individual e apaga as contradições de classe: todos os nobres aparecem unidos pela fé e pela espada.
⚖️ 4. A traição de Ganelon
“Ganelon foi julgado por perfídia e condenado à morte.”
Análise:
O julgamento e execução de Ganelon funcionam como exemplo moral. O traidor é punido, reafirmando os valores da fidelidade feudal. Não há questionamento da guerra ou do sistema — o erro é romper a cadeia de lealdade.
💭 5. A morte de Rolando e sua ascensão ao céu
“Anjos a recebem com glória.”
Análise:
A ideologia cristã transforma a dor da guerra em redenção espiritual. A morte em combate vira acesso ao paraíso — uma compensação simbólica para o custo real da violência.
👥 O que (e quem) não aparece?
Uma ausência significativa na Canção de Rolando é a do povo camponês. Os trabalhadores, servos e camponeses, responsáveis por sustentar economicamente o feudalismo, não existem na narrativa. A história é contada do ponto de vista da elite militar e religiosa, reforçando uma visão de mundo onde apenas senhores e cavaleiros importam.
🧠 Conclusão crítica
A Canção de Rolando não é apenas uma epopeia sobre coragem e fé. É, acima de tudo, um instrumento ideológico da aristocracia feudal cristã, que:
-
glorifica a guerra como virtude divina;
-
naturaliza o sacrifício e a obediência;
-
apaga os conflitos sociais e os trabalhadores;
-
legitima o poder de reis e clérigos como expressão da vontade de Deus.
Nesse sentido, a obra cumpre uma função histórica precisa: criar uma identidade cristã-feudal que une cruz, coroa e espada. É a literatura a serviço da dominação — mas também uma chave para entendê-la criticamente.
0 comments:
Postar um comentário