sábado, 31 de maio de 2025

Santo Agostinho e a Ideologia Cristã do Fim da Antiguidade

📍Contexto Histórico

Santo Agostinho (354–430 d.C.) escreveu A Cidade de Deus entre 413 e 426 d.C., após o saque de Roma pelos visigodos (410). O episódio abalou a mentalidade romana, que via a cidade como eterna. Muitos passaram a culpar o cristianismo pela decadência do Império. Agostinho escreve sua obra para defender a nova fé e reformular o sentido da história a partir de uma perspectiva cristã.

➡️ O que está em jogo é mais do que uma teologia: é a reorganização simbólica do poder diante do colapso do mundo antigo.


📘 A Cidade de Deus: Dualismo e Teologia da História

Agostinho formula um dualismo fundamental entre duas "cidades":

🕊️ 1. Cidade de Deus (Civitas Dei)

  • Fundada no amor a Deus.

  • Espiritual, universal, eterna.

  • Representa os eleitos, a Igreja e a ordem divina.

🏛️ 2. Cidade dos Homens (Civitas Terrena)

  • Fundada no amor-próprio, na vontade de poder.

  • Temporária, pecadora, corrompida.

  • Simboliza os impérios terrenos, como Roma.

➡️ Essa dualidade estabelece uma interpretação moral e metafísica da história, onde o mundo visível é provisório e inferior, e o mundo invisível é verdadeiro e eterno.


🧱 Análise Marxista: A Função Ideológica da Obra

1. Justificação da Alienação Histórica

O sofrimento terreno é naturalizado como parte de um desígnio divino. A injustiça e a opressão da Cidade dos Homens não exigem transformação concreta — apenas fé e resignação.

📌 Crítica marxista: Isso desloca a luta social real para o plano escatológico, desmobilizando qualquer projeto de emancipação histórica.


2. Legitimação da Igreja como Autoridade Suprema

Agostinho afirma que a Igreja representa a Cidade de Deus na Terra. Ela se torna mediadora da salvação, com autoridade espiritual superior ao poder político.

📌 Com Althusser: A Igreja torna-se um Aparelho Ideológico de Estado, disciplinando os corpos, organizando as consciências e legitimando a ordem vigente.


3. Submissão da Razão e da Vontade

A antropologia agostiniana parte da ideia do pecado original: o ser humano está corrompido desde o nascimento. O livre-arbítrio é insuficiente; só a graça divina pode salvar.

➡️ Isso rompe com o otimismo racional greco-romano e deslegitima a razão autônoma.

📌 Leitura crítica: A razão deixa de ser instrumento de libertação — passa a servir à fé e à autoridade. A submissão ao clero é justificada como salvação.


4. Desmobilização da Luta Social

A justiça verdadeira só existe na Cidade de Deus. A redenção só virá após a morte. O povo é orientado a obedecer, sofrer e esperar a recompensa celestial.

📌 Marx: “A religião é o suspiro da criatura oprimida” — Agostinho oferece um consolo transcendental para a miséria histórica, em vez de questioná-la.


🏛️ Função Histórica: A Igreja como Continuidade do Império

Num momento de crise imperial, o cristianismo assume a função de unificar simbolicamente a sociedade. Agostinho reorganiza a cosmovisão, oferecendo à nova elite (clerical e cristã) os fundamentos ideológicos para manter a ordem.

Elemento Ideológico Função no Novo Regime
Cidade de Deus Justifica o poder eterno da Igreja
Pecado Original Naturaliza a desigualdade
Graça Divina Retira do povo a capacidade de emancipação
Igreja como mediadora Centraliza o controle moral e espiritual
Coerção contra heréticos Legitima a violência em nome da “verdade” divina

🧩 Conclusão: O Fechamento Ideológico da Antiguidade

Agostinho representa a transição da razão cívica clássica para a fé cristã medieval. Ele absorve o estoicismo, o platonismo e o romanismo, mas os subordina à teologia.

➡️ Do ponto de vista marxiano:

  • Agostinho espiritualiza a história para ocultar as contradições sociais.

  • Substitui o cidadão pelo fiel, o filósofo pelo sacerdote, a pólis pela Igreja.

  • Ao fazê-lo, ajuda a consolidar a dominação de classe no novo mundo cristão.


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