📍Contexto Histórico
Santo Agostinho (354–430 d.C.) escreveu A Cidade de Deus entre 413 e 426 d.C., após o saque de Roma pelos visigodos (410). O episódio abalou a mentalidade romana, que via a cidade como eterna. Muitos passaram a culpar o cristianismo pela decadência do Império. Agostinho escreve sua obra para defender a nova fé e reformular o sentido da história a partir de uma perspectiva cristã.
➡️ O que está em jogo é mais do que uma teologia: é a reorganização simbólica do poder diante do colapso do mundo antigo.
📘 A Cidade de Deus: Dualismo e Teologia da História
Agostinho formula um dualismo fundamental entre duas "cidades":
🕊️ 1. Cidade de Deus (Civitas Dei)
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Fundada no amor a Deus.
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Espiritual, universal, eterna.
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Representa os eleitos, a Igreja e a ordem divina.
🏛️ 2. Cidade dos Homens (Civitas Terrena)
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Fundada no amor-próprio, na vontade de poder.
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Temporária, pecadora, corrompida.
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Simboliza os impérios terrenos, como Roma.
➡️ Essa dualidade estabelece uma interpretação moral e metafísica da história, onde o mundo visível é provisório e inferior, e o mundo invisível é verdadeiro e eterno.
🧱 Análise Marxista: A Função Ideológica da Obra
1. Justificação da Alienação Histórica
O sofrimento terreno é naturalizado como parte de um desígnio divino. A injustiça e a opressão da Cidade dos Homens não exigem transformação concreta — apenas fé e resignação.
📌 Crítica marxista: Isso desloca a luta social real para o plano escatológico, desmobilizando qualquer projeto de emancipação histórica.
2. Legitimação da Igreja como Autoridade Suprema
Agostinho afirma que a Igreja representa a Cidade de Deus na Terra. Ela se torna mediadora da salvação, com autoridade espiritual superior ao poder político.
📌 Com Althusser: A Igreja torna-se um Aparelho Ideológico de Estado, disciplinando os corpos, organizando as consciências e legitimando a ordem vigente.
3. Submissão da Razão e da Vontade
A antropologia agostiniana parte da ideia do pecado original: o ser humano está corrompido desde o nascimento. O livre-arbítrio é insuficiente; só a graça divina pode salvar.
➡️ Isso rompe com o otimismo racional greco-romano e deslegitima a razão autônoma.
📌 Leitura crítica: A razão deixa de ser instrumento de libertação — passa a servir à fé e à autoridade. A submissão ao clero é justificada como salvação.
4. Desmobilização da Luta Social
A justiça verdadeira só existe na Cidade de Deus. A redenção só virá após a morte. O povo é orientado a obedecer, sofrer e esperar a recompensa celestial.
📌 Marx: “A religião é o suspiro da criatura oprimida” — Agostinho oferece um consolo transcendental para a miséria histórica, em vez de questioná-la.
🏛️ Função Histórica: A Igreja como Continuidade do Império
Num momento de crise imperial, o cristianismo assume a função de unificar simbolicamente a sociedade. Agostinho reorganiza a cosmovisão, oferecendo à nova elite (clerical e cristã) os fundamentos ideológicos para manter a ordem.
Elemento Ideológico | Função no Novo Regime |
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Cidade de Deus | Justifica o poder eterno da Igreja |
Pecado Original | Naturaliza a desigualdade |
Graça Divina | Retira do povo a capacidade de emancipação |
Igreja como mediadora | Centraliza o controle moral e espiritual |
Coerção contra heréticos | Legitima a violência em nome da “verdade” divina |
🧩 Conclusão: O Fechamento Ideológico da Antiguidade
Agostinho representa a transição da razão cívica clássica para a fé cristã medieval. Ele absorve o estoicismo, o platonismo e o romanismo, mas os subordina à teologia.
➡️ Do ponto de vista marxiano:
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Agostinho espiritualiza a história para ocultar as contradições sociais.
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Substitui o cidadão pelo fiel, o filósofo pelo sacerdote, a pólis pela Igreja.
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Ao fazê-lo, ajuda a consolidar a dominação de classe no novo mundo cristão.
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