O século XIX foi marcado por intensas transformações sociais: o avanço da Revolução Industrial, a consolidação dos Estados nacionais, a expansão do capitalismo e, no caso do Brasil, a manutenção da escravidão como pilar econômico. Nesse cenário, a literatura realista emergiu como uma resposta crítica à idealização romântica, revelando contradições de classe, opressões e fraturas do mundo moderno. Duas obras centrais desse movimento — Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Germinal, de Émile Zola — retratam, de modos distintos e complementares, os extremos desse universo em crise: a burguesia escravocrata brasileira e o proletariado industrial europeu.
Duas realidades, duas classes
Machado e Zola escrevem sobre mundos radicalmente diferentes. Enquanto Brás Cubas representa um típico membro da elite ociosa do Império do Brasil, Etienne Lantier, protagonista de Germinal, encarna o operário francês submetido à exaustão física e à exploração brutal nas minas de carvão. Ambos são produtos e reflexos dos sistemas sociais a que pertencem — mas só um deles aponta para a transformação.
Brás Cubas: o fracasso burguês tropical
Narrado por um morto, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) inaugura o realismo no Brasil com uma crítica ácida à elite do século XIX. Brás Cubas não trabalha, não produz, não tem filhos, não sonha com mudanças. Sua existência gira em torno da vaidade, do tédio e do desprezo por qualquer forma de utilidade social.
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Essa célebre frase final sintetiza sua trajetória: uma vida vazia, que reflete a falência moral da burguesia imperial escravocrata. Sustentada pelo trabalho dos outros (especialmente escravizados), essa elite não possui projeto coletivo — vive de aparência, privilégios e autoengano. A ironia de Machado desmonta as máscaras da ordem vigente.
Germinal: a semente da revolução
Lançado em 1885, Germinal é talvez o mais contundente romance operário do século XIX. Zola descreve com crueza o cotidiano dos mineiros franceses, suas jornadas exaustivas, os acidentes, a fome e a repressão violenta às tentativas de greve. No subterrâneo das minas, o autor revela não apenas a exploração, mas também o germinar da consciência de classe.
“Eles morriam de fome, e os patrões ganhavam fortunas com cada tonelada de carvão.”
Zola não idealiza seus personagens: mostra-os em sua miséria, mas também em sua força. O romance termina com uma imagem poderosa — uma metáfora revolucionária:
“No fundo da terra, uma nova primavera se preparava.”
A esperança está na organização coletiva. A mina, lugar de morte, torna-se espaço simbólico da vida futura — uma sociedade emancipada do capital.
Contrastes estruturais e ideológicos
Elemento | Brás Cubas (Machado de Assis) | Germinal (Émile Zola) |
---|---|---|
Classe representada | Burguesia escravocrata e decadente | Proletariado explorado e insurgente |
Narrador | Morto, burguês, cínico e introspectivo | Onisciente, empático, coletivo |
Trabalho | Ausente, desprezado | Central, exaustivo, violento |
Conflito social | Implícito, filosófico, irônico | Explícito, material, revolucionário |
Transformação histórica | Negada — morte como fuga | Afirmada — organização como semente |
O que revela a comparação?
A partir de uma leitura marxista, é possível afirmar que Memórias Póstumas de Brás Cubas denuncia o vazio histórico e existencial da elite brasileira, ao passo que Germinal ilumina a energia potencial do proletariado em luta. Ambos os romances criticam suas respectivas sociedades, mas com finalidades distintas:
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Machado ironiza e desmascara, sem oferecer uma saída — Brás Cubas não se redime, não se revolta, apenas morre.
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Zola denuncia e semeia — mesmo após a derrota da greve, há futuro, há resistência, há semente.
Conclusão
Ler Brás Cubas e Germinal em paralelo é confrontar dois modos de estar no mundo: um que se sustenta sobre a exploração alheia e termina em apatia; outro que, ainda no sofrimento, cultiva a revolta e a esperança. Se Machado diagnostica a falência de uma elite parasitária, Zola vislumbra a potência de uma classe que ainda fará história.
Como leitores do século XXI, resta-nos perguntar: de qual solo brotamos nós? Do cinismo de Cubas ou da luta de Etienne?
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