Introdução
Os Sertões, de Euclides da Cunha, é uma obra fundamental da literatura brasileira — não só por sua forma inovadora, que mistura ensaio, crônica e relato científico, mas principalmente por seu retrato do conflito brutal entre o Brasil oficial e o Brasil real. Escrito após a Guerra de Canudos (1896-1897), o livro nos convida a compreender as raízes históricas, sociais e geográficas de uma tragédia que expôs a tensão entre as elites republicanas e as populações do sertão nordestino.
Contexto histórico e objetivo da obra
Euclides da Cunha foi enviado como repórter pelo jornal O Estado de S. Paulo para acompanhar a campanha militar contra Canudos, uma comunidade autônoma e religiosa liderada por Antônio Conselheiro, que resistia à ordem da recém-instaurada República. O resultado foi um massacre que chocou o país e revelou uma profunda incompreensão entre duas “civilizações”: a urbana, moderna, republicana; e a rural, tradicional, marginalizada.
Publicada em 1902, a obra busca explicar não só o evento bélico, mas a formação do sertão e de seu povo — através de uma lente sociológica e geográfica.
A estrutura da obra: Terra, Homem e Luta
1. A Terra: determinismo geográfico e crítica social
No primeiro bloco, Euclides detalha a natureza árida do sertão, sua vegetação escassa, solo pobre e clima extremo. Inicialmente, ele adota uma visão determinista, sugerindo que o ambiente molda a vida do homem sertanejo.
“O solo é estéril. É a negação absoluta da natureza. É uma terra de paradoxos.”
No entanto, uma análise marxista nos ajuda a ir além da geografia: a miséria do sertão não é apenas natural, mas historicamente produzida pela concentração de terras e pelas estruturas sociais que impedem o desenvolvimento e a inclusão social.
2. O Homem: a formação do sertanejo resistente
Euclides analisa o povo do sertão, reconhecendo sua resistência e coragem. Embora ainda imerso em preconceitos da época, ele valoriza o sertanejo como fruto de uma longa luta pela sobrevivência em condições adversas.
“É um forte. Não tem o raquitismo exausto dos mestiços neurastênicos do litoral.”
Essa visão rompe parcialmente com o racismo científico dominante, destacando que a suposta inferioridade é, na verdade, efeito do abandono e da exclusão social.
3. A Luta: a guerra como conflito de classes
A parte final retrata a violência da guerra contra Canudos — quatro expedições militares, três derrotas para o exército oficial e, finalmente, o massacre completo da população.
“Canudos não se rendeu. Exemplo único na História, resistiu até o esgotamento completo... morriam todos.”
Sob uma perspectiva materialista, Canudos representa uma ameaça simbólica e estrutural para a República burguesa nascente. Sua organização comunitária, baseada na solidariedade e na autonomia, era um desafio ao projeto liberal-capitalista e por isso foi destruída com brutalidade.
Funções ideológicas da obra
Elemento | Função crítica |
---|---|
República “civilizadora” | Mostrada como violenta, elitista e excludente |
Exército republicano | Aparece como instrumento de repressão da classe dominante |
Antônio Conselheiro | Simboliza a resistência ao modelo excludente da modernidade |
Sertão | Espaço marginalizado, mas também de resistência popular |
Canudos | Metáfora da alternativa social ao capitalismo emergente |
Conclusão: um retrato dialético do Brasil
Ainda que Euclides da Cunha não tenha adotado explicitamente uma perspectiva marxista, sua obra oferece um retrato profundamente dialético do Brasil. A nação aparece dividida entre:
-
O centro urbano e as periferias rurais;
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As elites políticas e econômicas e as massas tradicionais excluídas;
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A promessa da República liberal e a realidade do massacre social.
Canudos é o símbolo máximo da luta de classes brasileira em sua forma mais cruel: um povo que não cabe no projeto hegemônico da ordem é violentamente eliminado.
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